quinta-feira, 10 de junho de 2010

Estranhos Hábitos

É muita coisa para dizer, é muito tempo de silêncio para remediar.

Nesta quinta vi a placa diante do prédio; vende-se cobertura. DDD 22.

Tremi de emoção. Era o telefone esperado? Pode ser de imobiliária em outra cidade. Pode ser que não.

Anotei, pensei em ligar. Seria bem vinda?

Poderia fazer uma proposta.

Hesitei, e muito me doía a idéia de que os laços com aquele pedaço de terra seriam desfeitos em definitivo. Significaria o fim da esperança de esbarrar com essas pessoas queridas perambulando pelas ruas do bairro, um dia desses.


Quando quase decidida a ligar e negociar, alentada por um espaço exclusivo para o marido escritor dar assa aos seus contos, me bate na cara o chamado da realidade. Estava numa banca de jornal no largo das 5 bocas, acompanhada pela florzinha mais florzinha do meu mundo - e devoradora de livros, revistas e afins. Civilizadamente, a florzinha se encantava com um exemplar da Disney, e folheava, enquanto a mãe castradora e intolerante dizia para aguardar o dia 10, o bendito das notas que entram na conta, visto que era fim de mês e a dureza batia à nossa porta, e os 10 reais fariam falta. E a dona da banca, grosseira e insandecida, começou a gritar que era proibido folhear, pq se não vendesse quem pagava era ela, e ela estava ali para ganhar dinheiro, e não para ter prejuízo.

Tem horas em que os brios de mãe se misturam com os brios capricornianos. E com os brios de cidadania e civilidade, absorvidos no paraíso de Santa Teresa, local abençoado do Rio de Janeiro onde respeito é a palavra chave nas relações entre as pessoas locais ou estrangeiras. Enquanto a mulher gritava insandecida, eu ia lhe dando o dinheiro para pagar a revista (o dinheiro que eu não planejava gastar ali naquele lugar e hora com algo que poderia esperar por uma semana mais confortável, a próxima). E a pequena, sem a malícia que o crescimento nos traz, continuava a escolher outras revistas, as de 1 real, de pintura - agora auxiliada pela amável vendedora, adoçada pela nota de 20 e o troco de 10 que tinha acabado de dar.

Fui severa com a pequena:

- Belle, você não ouviu o que a moça disse? Não pode folhear as revistas. Aqui não pode ver antes de escolher, então você não mexe mais, ok?

E a vendedora, no maior relax;

- Não, mãe... Que é isso??? Deixa a menina escolher... Estas são tão baratinhas, dá para levar um montão... eu não me incomodo não...

Saí sem dizer mais nada, arrastando a pequerrucha. Do lado de fora expliquei:


- Filha, a vendedora não gosta que mexa. Não quero que você entre mais nessa banca, ouviu? Nem comigo, nem com o vô, nem com a vó, nem com o pai e nem com ninguém. Quando for para comprar, a gente vai para outro lugar onde possa escolher, tá?

Atravessamos a rua, rumo à calçada onde tem o sinal de trânsito. Imediatamente fechou, um ônibus parou e lá fomos nós. A mãe e a criança, sempre em linha reta, resguardadas pela luz vermelha. Ao lado do ônibus que estava parado graças ao santo sinal vermelho, um carro de passeio em alta velocidade passa a meio metro de nós. Zunindo.

Reclamo, apontando o sinal, e recebo o dedo médio do motorista como um pedido de desculpas. Às duas da tarde.

Assim acordei do devaneio, ainda que sinta muito e me doa o fato de sua família cortar definitivamente os laços com um local que até então me nutria a ilusão de termos eu e você em comum. Não quero passar a vida inteira imersa na falta de civilidade, não quero criar a minha filha num local em que a falta de respeito entre as pessoas passou ao lugar comum e já nem mais é notada. Não, não quero passar a minha vida inteira pagando para isso. A cobertura, famosa cobertura, é o único lugar de Olaria pelo qual nutro um carinho especial, porquê foi o único lugar do bairro onde vivi momentos felizes. Brincando, estudando e conversando com você. Tendo o frescor de participar da infância de Wallace. Um lugar em que eu via uma mãe amorosa e sensível, e aprendi que isso existia. E que a vida podia sim ser diferente e melhor.

Mas não, não poderia fazer uma proposta que coubesse no que a caixa econômica pode me disponibilizar para pagar pelos próximos 20 ou 30 anos, se o oásis de paz fica em meio ao deserto desumanizador em que o subúrbio se converteu. Ou teria sempre sido assim, e só agora, após um período no paraíso, é que meus olhos começaram a se aperceber de mais esta dor?

Não com o custo do meu tempo, meu 53 ou 63 anos, coexistindo com o que não edifica. Não.


Descartada a nostalgia, restava o número. Ligar ou não ligar, that's the question...

Vi no seu recado do Orkut uma abertura. Estou disposta a tentar.

Agora só falta a coragem .
Autora: Aurea Beart