quarta-feira, 31 de março de 2010

Estação Pavuna – Estação Samba.

O gênio é um homem discreto, caminhando pelas ruas do bairro. Leva nas mãos o cavaco. Ele olha as paisagens investigadas em suas canções. Desenrola uma idéia sadia com a rapaziada. Dá atenção aos tipos que ninguém pararia para ouvir. Acena para mulheres que ninguém ousaria cumprimentar. Sempre com um sorriso afável, convidativo, acolhedor.

Marcamos o encontro na Estação da Pavuna, na Praça Copérnico. “A meu jeito eu também construo meu sistema solar” sentencia Carlos Alberto dos Santos, sem saber direito que está filosofando. Atira ao redor uma melodia conhecida com seu instrumento, emendando com a voz:

“Agora/Lutar por você com palavras/ Pode ser uma luta muito vã/ Entretanto são muitas as manhãs/ E eu pouco para te amar”

Sabe que no amor as palavras têm pouca força para traduzi-lo em seu turbilhão e percebe que quem ama sempre se esgota na manhã seguinte para se reinventar no amor e na maneira que ele renasce para o outro.

Carlinhos – como ele prefere ser chamado – é um faz – tudo, “assim defendo os trocados para os guris”, mas mantêm uma sensibilidade e um rigor na composição que lembra os mestres como Candeia, Ismael Silva e Cartola.

Ele se constrange quando comparo seu talento “Não, esses aí são cobras, eu tô me criando, um dia chego lá”.


Não faz por menos quando na lista de suas preferências coloca nomes como Jorge Aragão e Martinho da Vila. Carlinhos, que teve a instrução escolar interrompida, impressiona com composições como esta:

“Nas ondas do mar/ Eu naveguei/ Na sombra do seu amor / Me banhei//A branca vela no horizonte/ A malha do meu jererê/ Pescador de alma insone”

Penso em como ele constrói as imagens de alguns sambas, ele parece adivinhar e completa “vem naturalmente”.

terça-feira, 30 de março de 2010

Agradecimentos Aos Dois Primeiros Leitores


Os dois primeiros comentários do blogue Arqueologia Urbana surgem de partes distintas do país. O primeiro, Waldecy, amigo de Vicente de Carvalho. Para quem não sabe onde fica, é só ficar atento às estações de Metrô, lá vai estar à plaqueta indicativa.

Vicente de Carvalho, conhecido como poeta do mar, parnasiano, não é lá muito lembrado nas rodas literárias hoje, mas já teve muita moral. Hoje o bairro dá guarita a esse meu amigo, versado em francês, com seus estudos realizados na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Arisco, na arte do verso lança sementes, produz plantas reluzentes como sóis que dividem a manhã que se aproxima. Que xinfra, hein! Mas, a minha praia é outra.

Abaixo o recado do Wal (decy) que promete botar a boca no mundo e espalhar a boa nova:

"Parabéns! meu caro amigo desejo-lhe sucesso na empreitada.Já tinha ouvido falar desse tipo de resgate de personagens urbanas em Pernambuco e Ceará e Belém na forma de cordéis,tiras em jornais populares e gibis,mas nada como você está fazendo usando as poderosas ferramentas da internet.Vou ajudar a divulgar o blog.Boa sorte,sucesso e conte comigo."

Alessandro Garcia, gaudério, dá as caras também e faz finta. Escritor de primeira linha, militante pelo direitos dos negros, parceiro de apuros, como a boa moral exige, está na categoria de irmãozinho. Não se faz de rogado. Pinta, borda, escreve e joga. O jogo da vida não é para qualquer um, tem que ter ginga, malandragem e tutano. Esse meu outro amigo e irmão desagua seus sentimentos nas palavras reproduzidas abaixo:

"Sensacional, meu irmão.Que grande ideia. Parabéns pela iniciativa e pela genialidade.
Vai dar muito certo!Abraço!"

São muitos os torcedores. O publicitário Severo como prefiro chamá-lo, ao invés de Garcia ou Alessandro, dá suas notas. E se eles me parecem exageradas, não são injustas. Porque levo a coisa na raça, na dificuldade. Não amoleço. Bato a bola para frente

segunda-feira, 29 de março de 2010

Beto Hippie

Nascimento, não se sabe ao certo. Se sabe, não diz. Prefere o silêncio e os goles na cachaça ordinária no bar do Alberico, na Pavuna. A roupa é uma calça jeans com remendos, a camisa um blusão xadrez ao estilo caubói americano, com uma bota cano curto, de camurça, bege. Um texano, se não estivéssemos acostumado com sua figura, perdida na penumbra do estabelecimento, misturado aos demais fregueses. A conversa franca aponta para alguém que aprontou muito, mas encontrou porto seguro na música. Beto Hippie. Apenas um nome. Não, não tem endereço. Mora na casa dos amigos. Cada mês pousa em algum lugar, lá, além de bom papo, garantem que as noites são regadas à música e lembranças de quando se acreditava possível transformar o mundo através do flower power.

As controvérsias surgem quando as canções são tocadas. Porque em uma rápida busca pela internet, algumas delas aparecem assinadas, não por Beto, mas por outros. Procuro não alertá-lo, porque poderia se emudecer, trancando consigo sua história e jogando fora a chave de suas lembranças. Toca Boa Aparência. Esta roda pelo mundo virtual com outra assinatura. A consciência me lembra: um compositor tem que sobreviver. Escuto a advertência da composição:

“Ei mãe/tenho andado/rodando por todo lado/lendo os classificados/procurando trabalhar/mas acontece/tem um tal psicoteste/é como coisa pra maluco/e a gente tem que enfrentar/a gente estuda/trabalhando o ano inteiro/quase sempre sem dinheiro/pra poder então passar/mas quando acaba/quando chega o resultado/quase sempre camuflado/a gente sabe, não passou”.

A letra acompanhada pela voz embargada, angustiada, repleta de abandono e orfandade. A geração que iria mudar o mundo sabe: quando chega o resultado, a gente sabe que não passou. Beto não desanima. Reclama que o mundo encaretou. Pergunto sem tem irmãos, responde que sim. E termina por aí.


As informações sobre a sua vida são desencontradas. Confrontadas revelam contradições, negações e uma lacuna que a memória dos entrevistados preenche com a imaginação, criando uma espécie de Mick Jagger do subúrbio.

Não é bem assim, ele me garante. Porque curte mais Raul Seixas, inclusive vestiu-se do roqueiro baiano naquele carnaval, empunhando sua guitarra feita de assento de privada, com a fantasia confeccionada por ele mesmo. Alguns reclamaram que lhe faltava a barba, ele não titubeou ao dar a resposta: “Não estou imitando o Raul, eu sou o Raul. Cada homem tem o Raul que sua alma quer e merece”. E desapareceu no turbilhão de foliões que se agrupavam na rua Mercúrio como um verdadeiro Orfeu Negro, e de trapos.

Beto Hippie II

Pesquisa Biográfica Beto Hippie. Consulta a fontes próximas do cantor pavunense garantem que sua obra vitimada pela expropriação é significativa, mas sem acesso ao discurso, passará às mãos de inescrupulosos. Partes das canções aparecem na internet, assinadas por companheiros do compositor. Muitos alegam que é difícil distinguir a verdade sobre a autoria das canções, porque afirmam que Beto Hippie participava de vidas comunais, coletivos de arte, como: Panela de Pressão e o Musiclub.



A memória nestes casos é tendenciosa. Ninguém irá assumir uma escorregadela ética, isto em se tratando de apropriação intelectual. Como não há registro de gravação, não há como distinguir quando foi a primeira audição das músicas de Beto Hippie. Sua memória sofrerá um processo de desqualificação pelo modo de vida que levava, conservando hábitos nômades, sem a preocupação de preservar a questão autoral, com a ingênua crença de que todos os seus amigos ainda estavam na mesma viagem. O tempo provou que não.



Dois rapazes, Amaury, filho de Alberico, dono do bar onde Beto fazia ponto, e, Renato Freire, conviveram com o compositor durante largo tempo, escutando suas aventuras e canções. Beto Hippie era alcoólatra e para conseguir um trago vendeu o próprio violão. Mas o instrumento foi resgatado por estes dois admiradores do trabalho desenvolvido pelo compositor. Como agradecimento a atenção especial, Beto confeccionou um caderno, ao parece seu testamento litero-musical, com as suas composições. Todo ele manuscrito, parece ser a única documentação disponível que se opõe a avalanche de negativas de que Beto não seria o autor de músicas como Boa Aparência ou Maracujá de Gaveta.



Se Beto Hippie não fosse o autor das músicas citadas, por que deixaria documentado que dezoito composições, um número tão exíguo, tão delimitado, se poderia se valer de sua memória para deixar cinqüenta, mesmo que não lhe pertencessem? Não há indicativo de que algum modo gostaria que estivessem devidamente “registradas” para não ocorrerem enganos como a atribuição para outrem daquilo que supunha seu? Se a este gesto creditarmos uma preocupação ética, ele não estaria restringindo seu legado às composições distribuídas nas páginas do caderno como as mais representativas daquilo que criou? Não acredito que um homem bêbado, como invariavelmente ele estava, se desse ao trabalho de escrever dezoito composições em um caderno e entregá-lo a dois rapazes, que não fossem suas de fato. O prestígio que poderia angariar terminaria quando o bar fechasse, encerrando-se assim o único palco de suas apresentações cotidianas.



A minha inclinação é pelo cuidado pouco usual com que Beto Hippie confeccionou o caderno, com apenas dezoito composições, entregando-o a dois rapazes para serem testemunhas/testamenteiros litero-musicais do que criou e sair de cena com sua morte. As versões depois de sua morte são inúmeras, mas restará como entrave a pergunta, se Beto era um maluco, um outsider sem paradeiro, dormindo muitas vezes nas sarjetas: por que anotar em um caderno este número tão limitado de canções se não lhe pertenciam?

Arqueologia Urbana



Procurei o grupo Afrorregae para propor uma coluna para a revista de cultura que publicam também homônima com o projeto Arqueologia Urbana.

Assisto no canal Multishow o programa Conexões Urbanas, capitaneado por José Júnior, a idéia me visitou em uma dessas ocasiões, quando me deu o estalo de construir perfis de personagens excluídos, mas não os comuns sobre o quais se realizam documentários como bandidos, facções, gangues ou patotas de pichadores.

Mas dar atenção aos artistas presentes no cotidiano de cada bairro. Por exemplo, em Pavuna, inúmeros perambulavam pelos bares da região: Beto Hippie, Alfredo Perneta, João Ribeiro de Almeida. Todos com excelente histórico artístico, porém relegados às paisagens regionais por motivos variados.

A coluna Arqueologia Urbana tentará fazer contato com estes artistas em exílio em sua própria terra, que desenvolveram projetos que superaram o provincianismo, dialogando com a tradição artística brasileira e com a vanguarda de outros países.

Parece impossível. Mas estes artistas existem e trabalham.

A conversa com o grupo Afrorregae não teve outro caminho senão o da própria felicidade. Logo se prontificaram em bolar um projeto para me hospedar em seu site, caminhando em direção a idéia da coluna, em um blogue, que se vingar, será batizado com o título acima.

Meus agradecimentos pela atenção de todos do Afrorregae e em especial ao José Júnior e ao Rafael Dragaud que compraram a briga. Espero ter sorte e conseguir.

Beto Quest

Prezado amigo e agora respondente:O conto sobre Beto Hippie transcendeu o literário e trouxe polêmica para o mundo real. Tentando elaborar um perfil que se aproxime do biográfico, me lanço nesta aventura interativa: montar através das impressões de quem viveu a presença e a obra do mestre a personalidade artística e biosocial desta quase lenda urbana pavunense.

Conto com sua colaboração nesta jornada, a de você que conheceu este cara e também a de você que conhece e curte o legado que ele nos deixou – tanto o suposto quanto o assinado.
Vamos às regras: responda com bastante verdade, a mais pura verdade. Salve! Depois abra o seu e-mail, anexe o seu questionário preenchido e envie para marielreis@ig.com.br. Trabalharei sobre os dados coletados analisando – os inicialmente no blog, para fomentar a discussão. Nada impede que no futuro esta pesquisa vire um ensaio literário. Caso você não queira ser identificado explicite esta informação no corpo do e-mail e no questionário.
Muito obrigado pelos seus minutos de atenção e pela sua infinita boa vontade em ajudar.
Mariel Reis, ficcionista e nativo da Pavuna
Como você entrou em contato com a obra de Beto Hippie?__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________Você conheceu o músico pavunense Beto Hippie pessoalmente? Em que época? De que maneira?________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________Sobre Beto Hippie, quais são suas lembranças mais nítidas?________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________Você tem algo documentado sobre ele? (vídeos, fotos, manuscritos, jornais da época) Conhece alguém que tenha?________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________Sabe de alguma passagem interessante da vida dele que possa compartilhar conosco?________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________Qual a impressão que o trabalho de Beto Hippie te traz?____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________Como você percebe a interação entre o trabalho de Beto Hippie e a Pavuna? Beto Hippie de alguma forma influencia o cotidiano da Pavuna, a Pavuna de alguma forma está presente nas obras de Beto Hippie?________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________