Finalmente saiu meu passe livre do metrô. Sem teto e sem perspectivas de mudança, titular de uma dívida de 2600 Reais e sem condições de viver os trinta dias do mês dentro da honra e glória do meu salário, e ainda impossibilitada de arrumar uma fonte de renda alternativa, decidi cortar despesas onde me pareceu mais fácil.
Pode ser uma esperança. Só o tempo dirá.
Desisti de fomentar o mercado gastronômico do entorno de meu trabalho, que esvazia o meu bolso diariamente. Tomara que sobrevivam sem mim. Quarta feira experimentei almoçar no restaurante popular da Central do Brasil. A coisa rola num esquema de bandejão: fila do lado de fora, sob o sol. Ou a chuva. Há uma fila para a galera em geral. Outra para os idosos e uma terceira para grávidas, acompanhantes, adultos com crianças e os deficientes.
Tem muito segurança, dentro e fora do galpão. Eles fariam uma fila a parte, como o povaréu que aguarda. Aliás o segurança da Supervia, ainda dentro da Central, me surpreendeu pela amabilidade. Além de me explicar direitinho onde era o restaurante – um pouco escondido para nossos padrões governamentais em que a propaganda é o objetivo do negócio – ainda me desejou um bom apetite. Quase me senti gente.
Não consigo identificar a ordem de prioridades, estou na fila das mulheres que esperam outras. Não por partilhar do estado interessante, mas pela maneira interessante com que Deus brincou com meu braço enquanto eu ainda habitava uma barriga, 30 anos atrás. Apresentei a carteirinha que atesta a minha bagunça genética e fui posicionada no lugar correto pelo guarda correspondente.
Atrás de mim uma gestante de pouco tempo, insegura pelo pouco tamanho da barriga, se seria aceita pelo guarda sem precisar lutar. Não me parecia fingimento. Falava com tamanha propriedade da maternidade, do alto dos seus supostos 20 anos incompletos, e de como as grávidas tem certas regalias no bandejão. Duas carnes, porções mais generosas, duas sobremesas. Era assim que pretendia alimentar os 4 filhos que ficaram em casa. Levaria a carne extra para dividir entre eles, para pôr sobre o arroz que faria ao chegar. E se preocupava com o horário, quase duas da tarde. A criançada devia já estar faminta.
Seu acompanhante aparentava nervosismo: “Eu não era para estar nessa fila. O cara ali vai chiar” – sempre de olho no guarda. E a moça explica que não, assim como criança não pode entrar sozinha, e tinham muitos adultos na fila em companhia das crianças, grávida também pode entrar com acompanhante. Pela fila especial. E o rapaz fica lá, mesmo que desconfiado.
São mais ou menos 20 minutos na fila, ao Sol. A grávida e o rapaz trazem ainda mais perplexidade para o meu dia. Descubro que o rapaz é um amigo. E que escaparam, não há muito, de um incêndio na casa em que viviam. Parece que são vizinhos. Ele, camelô, com muita raiva da guarda municipal. Ela diz que é melhor catar coisa e botar no chão para vender do que depender da boa vontade dos pais dos meninos. Menos de um, que salvou o filho dela de 2 meses – e que não era dele- do incêndio. Se arriscou no fogo, como se fosse o pai. “Eu tinha ou não tinha que dar um filho pra um cara desse? Esse eu fiz mas com muita mas muita felicidade” e olha para a barriga. Para em seguida dizer que o cara com quem tá agora sabe que o filho é do marido anterior. E que respeita, quis ficar com ela desse jeito mesmo.
Procuro não julgar, tento não julgar, quero não julgar. Mas a mente pensante é mais ágil do que as convenções morais. Filho é prêmio. Do alto da minha enrolação financeira, sem perspectivas de solução, mesmo com renda acima do que vejo ao meu redor e apenas uma filha para criar, é praticamente impossível frear o raciocínio. O cara é humano, decente, ético, honra a calça que veste e o fato de ter cérebro, coração, livre arbítrio, razão, sentimento, coragem, força, etc, etc, etc, e por gratidão recebe, como a um presente, um filho??? A quinta boca onde não se alimentam nem três nem quatro???
È outro padrão cultural. Entendo melhor meu marido, a cobrança que me faz e que amaria atender. Mas não há condições financeiras, físicas e nem morais. Não temos para a gente, os três da família, uma meio criada com a avó que provê parte de seus caprichos infantis. Como inserir mais um nessa ciranda de faltas?
A gestante continua a se abrir com o amigo. Conta que deixou um dos maridos porque ele tirava 130 Reais por semana no Saara, e o que ela ia fazer com 130 Reais por semana? A criançada precisa comer, vestir, calçar. O da barriga precisa de roupa e fralda.
Fico sem entender. Mas também o papo não é meu. Bisbilhoteira, apenas escuto.
A fila anda, entrada liberada. Como não conheço o esquema, acompanho o que fazem os habituées do local. Parece a entrada de um clube do subúrbio no início dos anos 80: dois guichês com roletas grandes e bilheteiras numa caixa de vidro. Nas paredes azul Royal a placa informa que a refeição servida tem cerca de 1400 calorias. Acima da roleta uma TV LCD 19 polegadas informa o cardápio, apenas a opção de carnes. Ou salsichão ou frango. Gosto de frango. Ainda nos primeiros passos, todos param. Um segurança enorme cercado de mais três explica par os companheiros que expulsou o cara da rampa porque ele tinha mandado todo mundo ir se f* e tomar no c*, e o cara se defende dizendo que todo mundo ali estava esculachando, porr*.
Imediatamente olho no entorno e percebo que, a despeito da quantidade enorme de seguranças, não tem detector de metais. Por uma fração de tempo, tenho medo. E parece que não só eu. As pessoas com crianças também tentam proteger os pequenos com o corpo, afastando-os da confusão. Não tenho tempo de gelar, a caixa manda a galera se adiantar para passar a roleta. Depois de uma avó com três crianças, dez reais e seis de troco lá vai minha moeda para a gaveta exposta, repleta. Tio Patinhas me vem à cabeça com a imagem. Sei que o custo de manutenção do programa supera em muito a arrecadação, mas a féria acumulada tem de fato um quê de riqueza, ainda que aparente. Muitos dinheiros juntos.
Acompanho o grupo e continuo ouvindo, agora já não sei se tão involuntariamente assim, a conversa da grávida. O acompanhante comemora, diz que sempre vai colar com uma amiga buchuda na hora do almoço, mesmo que precise pagar a dela. Comentam que bom mesmo é de manhã, quando é mais barato e mais vazio. Estamos em uma fila dupla. A da direita se divide em outras duas, já para se servir em um salão branco que dá acesso à área de acomodação metade vazia. Tenho tempo de ler que é proibido retornar para pegar suco, sobremesa ou qualquer coisa que tenha esquecido de botar na bandeja. Não é um papel simpático aquele colado na parede. E o segurança que evita as tentativas de retorno também não.
A fila da direita, onde estou, um segurança manda seguir em frente. Estamos em um corredor de 2x3 azul royal como a entrada. Os idosos se aproximam; devem ter sido a leva posterior. E fazem algazarra. Novamente, estamos em fila dupla. A grávida demonstra conhecer a lei, e comenta que uma colega conseguiu o aluguel social por causa do incêndio. O amigo diz que ele mesmo não. Que foi na secretaria, e que era a maior burocracia, que tinha que provar que o incêndio aconteceu e que ele morava lá. Acabou desistindo. A grávida diz que é para ele correr atrás. Que passou na Globo, no Wagner Montes, que não falta é mídia sobre o assunto. E se ele não conseguir achar o jornal velho, era só ir no Corpo de Bombeiro, porque lá tinha o registro do chamado e da ocorrência. Depois é só levar umas testemunhas de que ele morava lá para juntar no processo. E que ele ia conseguir. Se a fulana conseguiu, é claro que ele consegue.
O segurança conduz a fila para a área branca, onde tem dois balcões de refeição. Me perco da grávida, vou para o lado oposto.
O prato é de vidro transparente, mais limpo do que de muitos restaurantes a quilo que costumo a freqüentar. Está quente. Ponho sobre a bandeja de inox, para meu espanto, muito bem lavada. E leve. Mais confortável do que as que as costumo a recusar a 10 reais trezentos gramas. Tenho sede, torço para que o suco seja maracujá ou caju. A um real ou não, é o único de que eu gosto. Ou ainda para que haja água para acompanhar o rango.
Vejo que as porções são de fato generosas. È a área das prioridades, e está mais cheia do que a anterior. Tenho fome, e isso é raro para hora em que almoço. Peço pouco feijão. Vem 10 caroços e um copo de caldo. Peço mais, vira uma sopa. O rapaz deposita agora o arroz. A aparência é uma coisa intratável. Escolhi a fila errada, não tem frango, só salsichão. Digo que não gosto, então o que faço? Não pode fazer nada. Não pode ir para a fila em frente, pegar frango na outra baia. Chateada, por estar faminta e só ficar na sopa de feijão com arroz, nem percebo que passo direto pela sobremesa. Lembro que não posso voltar. Há um segurança que acompanha a fila. Paro para saber de que é o suco: acerola. Minha salvação, não pela acerola que não gosto e não vou beber, mas pela salada de alface, cenoura e pepino. Pego uma porção.
Difícil mesmo vai ser achar um lugar para sentar.
Encontro um lugar de costas para a rua, como de costume em qualquer restaurante. Invejo o prato da velhinha em frente, cheio de frango. Tenho impulsos de filar. Por sorte, me controlo. A velhinha conversa animada com outra ao seu lado. Apesar da intimidade, parece que acabaram de se conhecer. “Onde você mora?” “Na Praça Seca, em Jacarepaguá. Como não pago mais passagem, eu aproveito para vir almoçar aqui”.
A da Praça Seca se despede e sai. A outra grita para uma terceira, que já estava saindo ”Menina, você não me viu não é?” Ela obedece ao chamado, e vai conversar com a amiga, se posicionando atrás de mim. “Quando deu o lugar eu tentei te avisar, mas você nem viu!”. “É, mas agora eu já acabei.” “Não, foi antes” “Outro dia a gente almoça junta. Eu tô sempre por aqui”. Aqui as amizades se constroem como em qualquer bar. È também um espaço de sociabilização.
Depois que a senhorinha sai, viro de lado e vejo dois garrafões perto da porta, junto a uns copos descartáveis. Me empolgo, achando que é água e vou me servir. Estou perto da porta giratória, é chá e café. Continuo comendo minha sopa de feijão com arroz a seco. Não mais do que umas 8 garfadas. Está gostoso, mas como eu estou com sede, não desce. Vou embora e largo a bandeja na mesa, conforme reza minha formação socialista, para ajudar a gerar um novo emprego, o do cara que vai recolher a bandeja dos distraídos. Levanto, dou dois passos. Mas o remorso me corrói. Um projeto tão bonito, tão importante, não pode se tornar ainda mais custoso. E se todo mundo decidir fazer isso, onde o pessoal que está chegando vai sentar?
Como não faço há 12 anos, desde que assisti à palestra do MST sobre educação e capitalismo, levo minha bandeja completa à área de recolhimento. E me sinto bem, como se colaborasse de alguma forma para que as coisas dessem certo. Quase esqueço que vou sair dali para negociar minha dívida com o banco, torcendo para que aceitem o que de fato consigo pagar sem passar necessidade, mesmo sabendo que é pouco para os padrões bancários.
Quase na porta giratória, toca o celular. Não quero atender exposta de cara para a rua numa área perigosa da cidade, então me viro e caminho em direção á área de nutrição, aquela do segurança que toma conta da fila. Fico no limiar, não entro, mas o segurança me olha feio e faz um gesto de não para mim. Mostro o aparelho e atendo o telefone. Era meu marido, me repreendendo por estar ali, ainda mais sozinha. Mas eu sempre como sozinha, só variei um pouco o restaurante. “Então vc vai ter que escrever esta história, porquê essa experiência eu ainda não tive.”
O testemunho está aqui. Espero que sirva de pagamento ao que tenha passado na sua cabeça naquele momento de preocupação.
Com amor,
Aurea
PS: Saibam que, dois dias depois, ainda sonho com o frango que não comi
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